
Percepção faz falta! Sem uma reta visão de conjunto a vida se transforma numa sucessão de acontecimentos sem nexo. Quando esses acontecimentos ainda são de cunho predominantemente negativo, levam à exasperação. Ao querer explicar o que induz o ser humano ao suicido, o escritor russo Gorki afirma que falta um pequeno truque na vida daquela pessoa. Na verdade, o que falta nestas circunstâncias extremas é o correto entendimento sobre o propósito da vida. É o que distingue o mártir do suicida. Este atenta contra sua existência porque não enxerga escopo na sobrevivência. Aquele se sacrifica justamente porque intui que sua existência possui uma dimensão que ultrapassa o alcance temporal. Curiosamente, no compasso atual da vida, ostensivamente marcado pelo sucesso imediato e pelo alto grau de consumismo, pelo egoísmo em suma, a simples referência ao altruísmo representa séria ameaça a uma digna sobrevivência. Depressão, sentimento de derrota, falta de sentido da vida são as consequências previsíveis em uma existência centrada no individualismo.
O mistério de Jesus Cristo, sua encarnação e vida, é precioso ensinamento para o drama da existência humana. Sem a fé em Jesus Cristo viver, como escreveu Guimarães Rosa, passa a ser perigoso! O ser humano padece de uma grave inclinação para o egocentrismo. O egoísmo é um distúrbio que denuncia a ausência de Deus na vida de uma pessoa. Ao assumir a condição humana em toda plenitude, menos o pecado, Jesus traz importante luz para dissipar as sombras que ameaçam a realização humana. Todo ser humano tem muito a aprender com ele acerca da correta percepção sobre a vida.
A passagem de Jesus pelo mundo foi marcada por graves contratempos. Desde seu nascimento foi perseguido. Uma rejeição que foi se avolumando a medida que intensificava sua pregação, insistindo numa religiosidade e numa conduta fundada no respeito pelo semelhante. Um respeito tão radical a ponto de levar ao esquecimento de si em favor do outro. Um estilo de vida claramente na contramão da inclinação humana. Ao falar do Reino dos céus, as pessoas, inclusive os discípulos, teimavam entender o discurso de Jesus a moda humana, com privilégios, mordomias e poderes. Atônitos ficavam ao ouvir o Mestre falar da caducidade desta mentalidade. Legítima ascensão, ensinava, se consegue mediante o serviço e a renúncia. Os evangelhos registram com precisão didática o inevitável drama: a medida que intensificava seus ensinamentos sobre o esquecimento de si em favor do amor-doação, Jesus começava a ficar cada vez mais sozinho. As pessoas, em especial quem desfrutava de privilégios, não gostavam daquele tipo de conversa. Preferiam vistoso poder e vaidosa exposição. Compreende-se porque Jesus refugiava-se em oração a medida que o fim previsto se aproximava. Em sua condição humana necessitava muito da força divina!
Por três vezes previu o desfecho dramático que esperava por Ele em Jerusalém. Para surpresa de seus amigos íntimos, prosseguiu resoluto em direção à cidade santa. E a medida que o fim se aproximava, Jesus intensificou seus gestos de serviço e de doação. Numa mesma ceia, na véspera de seu julgamento, rebaixou-se, assumindo a tarefa do mais desqualificado serviçal, para lavar os pés de seus amigos, repetindo a lição máxima de toda sua existência: líder autêntico é aquele que se abnega. Não bastasse esse gesto, ainda serviu seus amigos com uma refeição especial, seu Corpo e seu Sangue em forma de alimento, doado para ser completamente consumado! Faltava a doação final para coroar e confirmar a instrução. Ao oferecer a vida livremente para ser sacrificada, Jesus selava seu ensinamento. Claro, num primeiro momento, a morte humilhante parecia ratificar que no mundo prevalece mesmo quem manda.
Mas a cruz não é o fim. O fim foi o que sucedeu na madrugada do primeiro dia da semana. Junto com o despontar da aurora, emerge o brilho da vitória do esvaziamento e do amor-doação. Nova percepção, nova luz invade a vida dos discípulos. A partir da ressurreição tudo se encaixa e adquire sentido. Iluminados, os discípulos começam a ter respostas para o drama da vida e saem partilhando esta alvissareira notícia! Mesmo enfrentando incompreensões e resistências, o ser humano encontra genuína realização, autêntico prazer em viver quando se esvazia em favor do semelhante. É o truque que falta!
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