
Natal não é o aniversário de Jesus! A data é convencional, influenciada pelos festejos pagãos do solstício do inverno. Ao celebrar o nascimento de Jesus, a comunidade cristã faz memória do mistério da encarnação. Mais que recordar o acontecido em Belém, a família cristã mergulha no sentido sublime desse mistério, guiada pela genial narrativa do evangelista Lucas. É sabido que os evangelistas, ao redigir os fatos e ensinamentos de Jesus, não seguiam projetos biográficos. Tencionavam, sim, fazer catequese. Aspiravam despertar ouvintes e leitores para a dimensão sobrenatural daqueles eventos e provocar ressonância em seu cotidiano. Há muitas verdades nas narrativas evangélicas que transcendem a palavra escrita.
Ao relatar o nascimento de Jesus, o evangelista Lucas recorre a várias alegorias para induzir seu leitor a assimilar a sublimidade do mistério. A mais evidente dessas alegorias é a hora em que insere o nascimento: é noite. Os profetas comparavam a vinda do Messias à luz que brilha na escuridão. Desde o pecado de Adão as trevas se avolumam no mundo, com toda sequela de ameaças e sofrimentos. A noite é sempre sinistra! Registrando, portanto, o nascimento do Filho de Maria durante a noite, Lucas insinua mais que a vigília noturna. Evoca os profetas. Foca a esperança que vence o medo. Esta é a razão porque a celebração do Natal – a chamada missa do galo – sempre começava a meia-noite, a hora supostamente mais escura. Quando as trevas estão em seu ápice, nasce a esperança de uma nova aurora. Ao marcar a celebração da missa do Natal mais cedo, perde-se o apelo dessa forte linguagem simbólica. Coroa esse discurso alegórico o aparecimento dos anjos, que, envoltos em luz, anunciam a paz aos homens de boa vontade. Recorda-se que o período histórico da época é marcado pela dominação do império romano que se gabava de estabelecer a Pax Romana, sustentada na imponência de seu exército. Essa paz, na verdade, representava o duro domínio do império romano que impunha medo e submissão aos colonos. Ao associar a paz ao nascimento de Jesus, Lucas denuncia a insustentabilidade da Pax Romana e proclama que a paz verdadeira repousa não na força da espada nem no medo do exército invasor, mas no amor e na justiça, valores associados ao Filho de Maria. Ao contrário da ordem romana que se impunha pela prepotência, a paz trazida por Jesus se alimenta da caridade, banindo o medo. Não tenham medo, declara o anjo!
O local do nascimento destaca outra eloquente alegoria! Lucas havia registrado que o casal de Nazaré não encontrava lugar onde abrigar-se. Foi-lhe concedido, finalmente, um provável ‘puxadinho’. Impactante contraste: a Palavra que tudo criou não encontra lugar na casa feita com tanto amor! Tragédia maior é a incompreensível resistência que Jesus continua encontrando no coração das pessoas. O homem anseia pela salvação, mas recusa acolher o legítimo Salvador. A manjedoura, hoje, reveste-se de forte apelo sentimental. Transcendendo emoções, fica apropriado indagar qual o real espaço que Jesus encontra na vida das pessoas, dos crentes, inclusive! Não estaria, hoje também, sutilmente relegado a ocupar o quartinho naquele recanto esquecido do coração?
Houve sangue, suor, dor e choro naquela noite! Sangue não de guerra, mas de parto! Choro não de morte, mas de vida nascente! Presume-se que foram as mãos calejadas de José as primeiras a tocar e abraçar o Menino Deus. Foram as mãos de José a acudir Maria e oferecer-lhe a assistência que necessitava no pós-parto. Maria concebe e dá à luz, José assiste, acode e acolhe! O Filho de Deus escolheu nascer em família, onde pelo jeito reinavam ternura, companheirismo e cumplicidade.
A narrativa de Lucas convida a transcender o olhar humano e enxergar o nascimento de Jesus com olhar contemplativo. O nascimento de Cristo representa, na realidade, o nascimento do Reino, aquele estilo de vida que adestra a olhar pessoas e acontecimentos com os olhos de Deus. Segundo o Papa Francisco esse olhar só pode ser de misericórdia. Natal não é data. Não é descontração de um dia com hora marcada para começar e terminar. É festa, festa da salvação! A celebração jubilosa do nascimento do Salvador carrega o alvissareiro evangelho: a humanidade tem salvação!
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