sábado, 21 de fevereiro de 2015

SIRENE

Jesus interpelou. Apresentou a mesma indagação em duas ocasiões distintas e recebeu, compreensivelmente, respostas diversas. A dois de seus discípulos, João e Tiago e a um cego que tinha forçado seu caminho para a ele apresentar-se, Jesus perguntou: o que querem? João e Tiago responderam que almejavam ocupar os postos mais importantes no Reino. Buscavam ascendência, notoriedade. O cego Bartimeu, por sua vez, candidamente implorou: quero enxergar! Sair da dependência, recuperar o mínimo da dignidade. Parece oportuno e instigador colocar o tempo da Quaresma neste contexto da indagação de Jesus, imaginando estivesse ele inquirindo de cada um de seus seguidores o que, na realidade, representa este tempo de graça. Pergunta de impacto e que, provavelmente, provocará pausas desconfortáveis na consciência dos discípulos. Ao se prestar atenção à resposta que brota espontaneamente do coração, o fiel terá clareza do seu real envolvimento com Jesus e sua causa. O cego Bartimeu assumiu e reconheceu sua condição de cego. Sem rodeios manifestou a Jesus o desesperado desejo de livrar-se daquela situação humilhante e dependente. E foi atendido. João e Tiago também foram honestos, mas estavam preocupados apenas com vantagens materiais, queriam fama e destaque, favores que não faziam parte da bagagem do Mestre, pelo menos não no sentido do mundo. Foram atendidos, mas de maneira bem diversa do que pensavam. Quaresma representa ocasião privilegiada para o fiel reconhecer-se interpelado por Jesus acerca da sua identidade, do significado e valor que dá à condição de discípulo. Com a clara consciência que pouco valem respostas academicamente corretas ou teologicamente precisas se não correspondessem ao que se guarda no coração. A Quaresma é tempo precioso para o sujeito que assume conscientemente a condição de discípulo. Adotando a linguagem figurada do apóstolo Paulo, Quaresma é tempo especialmente favorável para quem deseja vestir-se de Cristo. É com a dimensão do discipulado que o ciclo da Quaresma se ocupa. Habitou-se a associar este tempo litúrgico a determinadas práticas penitenciais, como jejum e abstinência de carne. Valorosos, sem dúvida, mas estéreis se forem considerados como fim em si mesmos. Na espiritualidade litúrgica, essas práticas piedosas são consideradas como meios, instrumentos para se chegar a um objetivo. É este objetivo que deve canalizar todas as energias. E, logicamente, aprimorar jejuns e ajustar abstinências. A Quaresma prepara o fiel para celebrar a ressurreição de Jesus. Nota-se, a preparação não visa comemorar, mas celebrar a Páscoa do Senhor! Páscoa não é recorrente data no calendário. Representa para o crente o mistério chave que dá rumo e sentido à história da humanidade. Ao celebrar a Páscoa, o crente não recorda apenas a vitória de Jesus sobre a morte, mas nela se insere, por ela deixa-se configurar. Recorrendo novamente a linguagem precisa do apóstolo, ao celebrar a ressurreição de Cristo, o crente renasce com Ele para uma vida nova, uma vida com propósito, independente das contingências da vida. As prementes necessidades materiais, o ritmo acelerado da vida, o maciço e articulado assédio do consumismo absorvem a atividade humana e, imperceptivelmente, modificam hábitos e alteram preferências. Quando dá conta, o cristão se percebe distante do ideal do evangelho. Quando muito, participa do culto, mas, ao analisar detidamente sua conduta e suas preferências e reações, reconhece que a fé e a liturgia exercem limitada influência em sua vida. Sua identidade cristã perdeu vigor, seu testemunho ficou pífio. Sua presença não provoca surpresas entre conhecidos nem questionamentos entre colegas. Se enxerga como mais um que acompanha conformado o confuso caminho coletivo. O ciclo quaresmal é pedagogicamente despertador. Quaresma é tempo de acordar. É a sirene que desperta da modorra. Preciosa ocasião para analisar que resposta se daria à interpelação do Mestre: o que você busca? Reconhecendo-se falho e inconstante, o crente se penitencia. Aceita as cinzas como sinal de arrependimento, como sirene que desperta. À semelhança do cego Bartimeu reconhece que necessita enxergar. Renovar a identidade do discípulo. Passar das sombras para a luz! Ressurgir das cinzas para nova vida!

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