
Essencialmente contestador é o cristão! Inspirado na atividade de Jesus Cristo e tocado pelo seu exemplo de vida, o discípulo contesta os ambíguos valores do mundo! Analisando com objetividade a atuação de Jesus percebe-se a radicalidade de sua inconformidade. Jesus questionava vaidades sociais e criticava ambições políticas. Investia com duras censuras contra práticas religiosas, algumas de caráter eminentemente sagrado. Conhecidos são os frequentes embates acerca do verdadeiro sentido da santificação do sábado. Contestava com veemência o ambíguo moralismo ensinado e cobrado pelos fariseus, ao mesmo tempo em que convidava seus ouvintes a entenderem e captarem os legítimos apelos divinos. Inovadora a sua leitura do Torá, texto fundamental da religiosidade judaica. Fazendo contraponto à observância externa da Lei, Jesus explicitava o real desígnio de Deus, destacando a genuína alma da religião. Citando o adultério como referência, Cristo mostra que adúltero não é somente quem mantém relacionamentos extraconjugais, mas também quem olhar o próximo com cobiça licenciosa! Aplicado na mesma coerência, o Mestre mostra a pouca relevância da liturgia do Templo, se não for acompanhada por uma genuína conversão de conduta. Não é sem motivo que o Nazareno se tornou indigesto para as autoridades religiosas da época.
Idêntica postura e semelhante coragem Jesus exige de seus seguidores. Com admirável coerência, Cristo não quer constituir uma comunidade separada do mundo. Ao contrário, quer que os discípulos formem no mundo um grupo tão coeso e inserido a ponto de transformar os valores que regem a sociedade. Com formidável sabedoria recorre a símbolos que magnificamente ilustram seu pensamento. Provoca seus seguidores a agirem como sal na comida ou como fermento na massa. Impossível distinguir esses elementos quando misturados na comida, porém facilmente perceptíveis onde atuam. Orígenes, escritor cristão dos primeiros séculos, captou esta catequese do Senhor Jesus ao descrever o discípulo como um cidadão igual aos demais, sujeito ao mesmo calendário e disciplinado pelos mesmos regulamentos civis, no entanto, com uma proposta de valores diferentes.
Salta aos olhos a grande verdade evangélica: o espaço sagrado do cristão não é o templo, mas a rua! O espaço privilegiado da atuação do discípulo não é a igreja, mas o cotidiano da vida. Revolucionária verdade a sacudir os fundamentos da religiosidade tradicional. Durante séculos acostumou-se e acomodou-se a reduzir as obrigações religiosas a sacramentos e cultos. Sem dar-se conta, o discípulo foi cultivando uma dupla identidade: havia a identidade religiosa, a postura dentro da igreja, e a identidade civil, os valores a reger o cotidiano. Como se o rito religioso nada tivesse a ver com as obrigações civis. Na igreja reza-se o Pai Nosso e dá-se o abraço da paz, enquanto na rua contemporiza-se com a desigualdade e a mentira, minimiza-se a exploração e promove-se rivalidade. Contaminados e influenciados pelos valores do mundo, os cristãos deixam de agir como potenciais transformadores. Pior, ao resignar-se diante de tamanha inversão, deixam de testemunhar sua real identidade.
Em sua catequese, o evangelista Mateus elabora uma estratégia iluminadora. Como primeiro pronunciamento de Jesus, o evangelista apresenta a proposta das bem-aventuranças, posturas radicais a orientar e purificar o relacionamento entre as pessoas. Como último pronunciamento de Jesus, Mateus reproduz a descrição do Juízo Final, cujo comprometedor destaque é a identificação de Jesus com o mais desqualificado dos irmãos. Os dois discursos admiravelmente convergem no enunciado da revolucionária boa nova: o espaço privilegiado da ação cristã é a rua, no contato e trato direto com o irmão. Lido com a lupa das bem-aventuranças, o discurso sobre o Juízo Final destaca a caridade, o tratamento reverente devido a todo ser humano, como o qualificativo de todo homem de bem, em especial e obviamente, do seguidor de Jesus. Contagiado pelo zelo solidário de Jesus Cristo, longe de qualquer ideologia ou doutrinação, o discípulo assimila e assume sua real identidade: portar-se como rebelde convicto, sem violência, num mundo que patrocina esquemas geradores de desigualdade, miséria, sofrimento e morte.
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