sábado, 6 de fevereiro de 2016

ARTIGO: DESERTO

Rende a diligência. Tudo que é cuidadosamente preparado geralmente dá certo e gera difuso deleite. Por outro lado, a improvisação frustra e deixa uma sensação de desprestígio e insatisfação. Mesmo em miúdas ocasiões, quando há diligência na preparação e empenho na execução, palavras ganham profundidade e gestos se revestem de dignidade, causando deleite e, principalmente, produzindo resultados almejados. A dispersão é apontada, justificadamente, como um dos grandes fatores para a superficialidade que contamina a moderna cultura. A comunicação móvel configura de tal maneira o comportamento moderno que os cidadãos, por considerarem imprescindível manter-se permanentemente conectados, estão, ironicamente, se desconectando não somente da realidade que os envolve, mas, pior, de si próprios. A permanente e subconsciente possibilidade de intromissões tira das pessoas a capacidade de concentrar-se. Esse constante estado volúvel afasta as pessoas de suas próprias identidades. Vive-se em banal superficialidade e angustiante alienação. É preciso gesto heróico para o cidadão se desvencilhar, momentaneamente que seja, da sua móvel aparelhagem. De usuário ele está se transformando em súdito servil da tirania eletrônica. Com o agravante corolário da banalização das informações. Qualquer inoportuno e trivial comunicado possui a potencialidade de dispersar a atenção até do mais sagrado dos deveres. Essa triste realidade levanta relevante questão existencial. Na urgente busca de ajudar o indivíduo a definir a própria identidade, costuma-se sugerir que ele externe em palavras a imagem que faz de si. Face à multiplicidade de informações a que cada indivíduo está sujeito, pode-se preferir modificar o teor da investigação, induzindo o indivíduo a apontar quem, na realidade, faz a sua cabeça. Indo mais fundo, pode-se preferir instigá-lo a destacar suas fidelidades: a quem ou com quem se sente realmente comprometido. Não seria nenhuma surpresa se transparecesse a total ausência de comprometimentos. Ou incertezas acerca da própria identidade. A dispersão é tão generalizada que provoca naturalmente uma confusão de valores. Na mesma medida que tudo passou a ser importante, nada, na realidade, é relevante. Nivela-se tudo por baixo. Essa caótica situação existencial invade, obviamente, o espaço religioso. Ao reconhecer a múltipla e agressiva invasão profana, emerge espontaneamente urgente alerta: se o fiel não optar isolar-se do estridente ruído materialista e do constante apelo consumista correrá sério perigo de reduzir a dimensão religiosa à condição de inconseqüente ritual, com data para começar e hora para terminar. Urge conscientizar-se que a religião não é efeméride. Nem se esgota em ritos pomposos. É, na linguagem teológica, mistério. Há algo nela que ultrapassa o simples registro. Uma realidade que transcende a percepção sensorial. A consciência dessa dimensão sobrenatural instiga o fiel a querer mergulhar sempre mais fundo no mistério. Grave equívoco comete a pessoa que imagina já conhecer tudo do mistério! Compenetrado, o fiel entende como imprescindível pressuposto aproximar-se com respeito e reverência dos mistérios sagrados. Ora, essa contemplação só será possível se, de fato, optar por desligar-se dos agressivos ruídos a marcar o compasso moderno. Isolando-se, encontrará condições para meditar com diligência os mistérios sagrados. Tal exercício demanda silêncio, tanto interior como exterior. Não basta silenciar ruídos externos. É preciso exercitar-se na concentração da mente e da imaginação. Aplicando-se com diligência nessa tarefa, palavras e símbolos adquirem novos contornos, peso e impacto. Deixam de ser elaborados formulários para se transformar em fontes inspiradoras, alimento do espírito. Esse descanso da alma fortalece a convicção que há mais a ser conhecido e descoberto. Motiva-se, então, a querer mergulhar-se com ainda maior diligência na busca de ampliar a compreensão dos mistérios sagrados. Plena razão têm os místicos ao instigarem os fiéis a buscarem regularmente espaço e ambiente de deserto. No voluntário isolamento, a mente enxerga o essencial, dispensa o supérfluo e acomoda o assessório. Deserto e diligência são preliminares indispensáveis para a alma humana reencontrar-se consigo mesma, reafirmar sua identidade e reconquistar sua legitima dignidade.

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