sábado, 13 de fevereiro de 2016

DESPLUGAR-SE

"Cinzas e nada mais"! Recorriam a esse estribilho os pregadores para enfatizar o clima a prevalecer na vida da comunidade cristã a partir da quarta-feira de Cinzas. Nas teologias onde predomina a visão dualista da vida, classificando tudo que é prazeroso como mal e merecedor de censura, a quarta-feira de Cinzas e o subsequente tempo de Quaresma, revestem-se de ambiente sombrio, quase melancólico. Essa visão maniqueísta continua fazendo a cabeça de muita gente que confunde santidade com um rígido moralismo, desembocando numa religiosidade que privilegia demônios, castigos e infernos! Não é de se admirar que diante de pregação tão sinistra, muita gente acaba se afastando da igreja por não conciliar as belezas e os prazeres inatos à vida a situações pecaminosas. Cinzas é eloquente símbolo. Multifacetado! Pode ser usado num sentido acentuadamente negativo, lamuriando a transitoriedade de tudo o que é material. De fato, tudo passa na vida. Perdem-se vigor e formosura. Perde-se saúde. Perdem-se amores. Perdem-se amados! A existência é uma cruel vaidade! Os prazeres, armadilha do astuto demônio! Consequência lógica desta visão fatalista é o desencanto com a existência e a abominação de tudo o que é material. “Cinzas e nada mais”! Os pregadores adeptos a essa escola de pensamento, aproveitam para carregar o discurso moralista com ameaças de castigos e fogos eternos! Cinzas, nessa escola, é símbolo de expiação, e o tempo da quaresma, período de punitivas abstinências para reparar antigos excessos e purificar a alma. Urge pagar pelos pecados antes que seja tarde demais. Embora inegavelmente transitória e falha, a existência humana, como a vida, está em constante evolução e renovação. Emerge outra leitura na fecunda simbologia das cinzas. Em regiões onde com frequência sucedem incêndios florestais, engenheiros florestais e botânicos ensinam que as cinzas atestam a presença anterior de vida. Vira cinzas o que antes era espécie viva! E muitas vezes essas mesmas cinzas se prestam para favorecer o surgimento de novas formas de vida. Nesta leitura, a cerimônia das cinzas adquire dimensão altamente pedagógica e especialmente programática. Pois associa a quaresma, e, logicamente a quarta-feira de cinzas que demarca seu início, como tempo especialmente favorável à preparação da grande festa da Páscoa, quando se renova a identidade cristã. Adere-se à imposição das cinzas não por causa de possíveis passados excessos, mas porque se mira a renovação da identidade cristã, solenemente celebrada na Vigília Pascal! Ao celebrar a ressurreição de Cristo renova-se a identidade cristã! Ressurge-se com Ele para uma existência ainda mais plena e fecunda! Nesta visão, a cerimônia das cinzas se despe daquele ar de fingida pieguice. Ao contrário, aproxima-se das cinzas com a clara consciência de quem deseja colocar as coisas em seu devido lugar. O que dá prazer, permanece bom, afinal é dom de Deus, mas usado com sabedoria, no tempo certo e com a devida moderação. Repara-se que o conceito predominante na liturgia da quarta-feira de cinzas insiste na necessidade de fechar-se no segredo do próprio quarto, claro convite para arrumar tempo, isolar-se e assim dedicar-se a um real balanço da própria condição cristã, sempre em vista de uma libertadora renovação. Esse convite para o recolhimento torna-se urgente nos dias atuais, marcados por tantos ruídos, distrações e fictícias urgências. Constantemente assediado por diversificados apelos, o homem moderno precisa desplugar-se regularmente para encontrar-se consigo próprio, avaliar sua vida e suas preferências em vista de um ideal a ser alcançado. Nessa análise, é possível que se descubra que na vida foram se instalando hábitos e posturas incompatíveis com a condição de discípulo e, por isso, merecem, sim, ser transformados em cinzas para dar lugar a outros geradores de vidas. No início da vida cristã, a testa do batizado é marcada com o óleo do crisma, o selo da pertença à família divina. Na quarta-feira de cinzas, o cristão humildemente se curva e aceita novamente que fique marcado, desta vez com cinzas, em sinal do real compromisso de reassumir, com renovado vigor, sua identidade cristã.

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