
O filósofo dinamarquês Kierkegaard elaborou uma alegoria que permanece altamente provocadora. E interpeladora. Contou que um circo, em visita a uma cidade de interior, pegou fogo enquanto estava sendo montado. O dono mandou o palhaço pedir socorro na cidade. Quanto mais ele suplicava, mais as pessoas se divertiam. Chegaram a louvar a genial estratégia como tentativa para chamar atenção. Quando, enfim, a população decidiu visitar o circo, encontrou somente desolação. Não deu crédito ao palhaço e ficou sem o circo! Um dos impressionantes, e trágicos, equívocos da cultura humana é confundir grau de credibilidade com convencionais credenciais. Um sujeito com diploma e pose de doutor recebe respeitosa atenção, ao passo que um cidadão, desprovido de traje e patente, costuma ser educadamente ignorado, mesmo que falasse a mais sublime das verdades. Avalia-se o conteúdo a partir da aparência. Já se observou que Shakespeare escrevia com pena de ganso, nem por isso suas obras caducam. No entanto, quem se apresenta com a moderna parafernália tecnológica possui enormes chances de lograr oportunidade e projeção, mesmo falando somente obviedades! Inúmeras são as situações onde gente simples, sem pose acadêmica e sem nenhum traje de grife, deixa auditórios cativos e plateias entusiasmadas ao ter a oportunidade de expor seu talento. Recebidos com comentários pouco respeitosos por presentar-se de maneira modesta e desajeitada, vencem preconceitos e desqualificam prejulgamentos. Na parábola de Kierkegaard, a população ficou sem circo porque quem anunciava o sinistro se vestia de palhaço. E palhaços não merecem crédito!
Com fina sutileza, o filósofo dinamarquês aplicou a parábola à pessoa de Jesus Cristo. O divino mensageiro veio trazer verdades sublimes com potencial para revolucionar culturas e garantir a tão almejada paz universal. No entanto, ao apresentar-se na pele de homem comum, aprendiz de carpinteiro, ficou descredenciado. Seus conterrâneos o rejeitaram, porque imaginavam conhecer suas origens. Os sacerdotes o desqualificaram porque não foi formado em nenhuma escola bíblica conceituada. E a autoridade romana o desdenhou porque não apresentava nenhum viés de liderança populista. Viesse cercado de anjos, realizando feitos mirabolantes, como sugeria o tentador no deserto, conseguiria maior crédito! A rejeição do nazareno persiste porque a mensagem permanece atrelada à aparência. Merece crédito quem bem se apresenta. Possivelmente seja por isso que muitos clérigos na atualidade – entre todas as denominações religiosas – investem tanto em indumentária vistosa e paramentos pomposos.
O bom senso sugere critérios para avaliar conteúdos. O primeiro, evidente, é livrar-se do nefasto preconceito. É aprender olhar além das aparências. A Bíblia registra inúmeras intervenções divinas protagonizadas por improváveis agentes, desprovidos de qualificativos convencionais. Quem atendeu aos conteúdos dos apelos, libertou-se e iluminou-se. Quem os rejeitou, baseando-se na inidoneidade do mensageiro, permaneceu nas trevas e confuso. Critério outro é estar sempre aberto para ouvir e filtrar. É bastante comum as pessoas aceitarem somente teses que coadunam com suas convicções. Doutrinas que confrontam e exigem mudanças de mentalidade costumam encontrar resistência porque nem sempre se está disposto a mudar de hábitos ou de posição. A mais ilustre vítima desta tacanha mentalidade é o próprio Jesus Cristo. Sua leitura da Palavra Sagrada fazia todo sentido, encantava, mas como confrontava hábitos e contestava privilégios, foi cruelmente banida. Quando não há argumentos convincentes, apela-se para a ausência de convencionais qualificações!
O circo continua em chamas. O emissário segue alertando. Não logra crédito, contudo, porque faltam-lhe pose e convencional projeção.
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