sábado, 15 de setembro de 2018

CÓRDOBA

Chamar por Rafael, em Córdoba, pode dar confusão. Fui informado que, na cidade, entre dez homens, pelo menos cinco são batizados com o nome Rafael. O arcanjo é reverenciado pelos nativos como o protetor da cidade. Sua imagem coroa o imponente campanário da catedral/mesquita, orna o majestoso coro da mesma construção e ainda protege uma das mais famosas pontes sobre o rio Guadalquivir. Todo sentido faz que no dia 24 de outubro, data da sua festa litúrgica, a cidade, literalmente, para. Somente os serviços essenciais funcionam, pois a população costuma sair pelos campos ao redor da cidade aproveitando-se da folga. A Catedral/Mesquita de Córdoba é, justificadamente, a atração maior da cidade. Sua arquitetura é um registro em pedra e obras de arte da pujança de sucessivas culturas que marcaram a história da cidade. Possivelmente seja o único templo religioso no mundo a abrigar, simultaneamente, dois credos distintos, o ecumenismo arquitetônico. A Espanha é, tradicionalmente, um país cristão. Mas quando, no século VIII, avançaram dentro do espaço ibérico, os mouros foram impondo sobre os territórios conquistados sua rica cultura. Na época, a cidade de Córdoba representava um entreposto importante nas rotas comerciais entre o leste e o oeste. Ali instalados, os colonizadores árabes tratam de marcar vistosa presença. Onde antes havia a principal igreja católica, erguem uma suntuosa mesquita, sucessivamente reformada e ampliada por subsequentes governadores. Os mouros encomendaram a construção da mesquita aos seus mais ilustres arquitetos. Inspirados na fé muçulmana, a construção converge ao mihrab, pequeno nicho a indicar o Mecca, o templo Sagrado de todos os muçulmanos. Onze naves, apoiadas em delgadas colunas, cujos arcos, simetricamente pintados em branco e vermelho, lembram ferraduras, induzem à qibla, a capela que abriga o mihrab. A imponência estética e a harmonia do conjunto encantam. A excepcionalmente delicada, embora austera, decoração que orna paredes e emoldura arcos com trechos do alcorão e desenhos inspirados na natureza, criam, naturalmente, um clima místico. O visitante é tomado pela nítida sensação de estar em ambiente sagrado. Um curioso detalhe chama a atenção nesta peculiar mesquita. Pelas leis litúrgicas islâmicas, o mihrab deve ficar na direção do Mecca. Em Córdoba, o nicho aponta para a direção Sul! No séc. XIII, a cidade retorna ao domínio cristão. Com a subsequente expulsão dos mouros, os reis católicos mandam erguer a catedral católica, dedicada à Virgem Maria, justamente no espaço ocupado pela mesquita. Por um inexplicável, embora feliz, capricho da história, nem os reis nem os bispos cogitam destruir o monumento mouro. Apenas cuidam de ‘batizar’ a área ‘pagã’, adaptando os espaços ao ritual cristão. Decidem rivalizar a beleza arquitetônica moura com o esplendor dos paramentos e vasos litúrgicos romanos. A arquitetura da catedral mistura os estilos gótico e barroco, enriquecidos por alguns extraordinários complementos, como, por exemplo, o coro reservado às orações canônicas. Todo esculpido em mogno. Um deslumbre! No museu da Catedral, algumas estupendas obras barrocas, como a Custódia, com dois metros de altura, trabalhada em prata e levada, anualmente, na procissão de Corpus Christi, desde o séc. XVI. A Catedral/Mesquita resume admiravelmente a outrora pujante história de Córdoba. Os ricos mouros como os prósperos cristãos se revezam no jeito de externar sua reverência ao sobrenatural e, simultaneamente, exibir e exaltar sua política hegemonia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário