sábado, 5 de janeiro de 2019

INOCENTES

A morte dos inocentes contradiz o projeto da salvação. Deus salvou Jesus, mas permitiu que centenas de crianças inocentes fossem sacrificadas. Esta leitura crítica alimenta a censura do laureado escritor português, José Saramago. Em seu livro: O evangelho segundo Jesus Cristo, o conceituado escritor externa sua inconformidade diante da inoperância divina frente ao gesto tresloucado do paranoico Herodes. Assim como poupou Maria, Deus podia também poupar as outras mamães do brutal martírio. O protesto de Saramago faz sentido, quando se olha o chocante episódio do ponto de vista meramente racional. Os evangelhos, é sempre bom lembrar, são, em essência, proclamação. Narram fatos com o objetivo de provocar eco na vida dos ouvintes. É nesta perspectiva de catequese que devem ser ouvidos e lidos. Alguns historiadores confirmam que, de fato, no tempo de Herodes aconteceu algo semelhante à brutal matança de crianças. O evangelista Mateus, o único a relatar o episódio, encaixou o gesto monstruoso na narrativa da infância de Jesus com o objetivo de convencer seus primeiros destinatários, judeus convertidos, que o Filho de Maria era o novo Moisés a libertar as nações. Nesta perspectiva catequética, emergem interessantes e iluminadores paralelos nas biografias dos dois ilustres libertadores. No seu nascimento, Moisés precisou ficar escondido para fugir do horror de matança de meninos determinada por Faraó. Refugiou-se no Egito, paradoxalmente criou-se no palácio de Faraó, de onde saiu para libertar o povo da dura escravidão, conduzindo-o à terra prometida. Apenas nascido, Jesus, igualmente, precisa esconder-se da fúria de Herodes, refugiando-se para o Egito, de onde volta para seguir sua vocação redentora. A convergência na história das duas figuras libertadoras, para os ouvintes do evangelista Mateus, formados principalmente por judeus convertidos ao cristianismo, é iluminadora. Jesus, em sua infância, repete a mesma trajetória de Moisés, credenciando-se a ser aceito como seu legitimo sucessor, o novo libertador, não de uma escravidão política, mas de um domínio mais amplo, representado pela rejeição a Deus. Sucede e supera Moisés, pois este liderou uma libertação étnica, enquanto Jesus, salva e resgata das trevas do erro todas as nações, representadas, no evangelho de Mateus, pelos Magos. Convém adicionar que somente Mateus registra a visita dos sábios do Oriente. Ouvidas e lidas nesta perspectiva, a infame ordem de Herodes e a viagem dos Magos convergem para destacar a sublime catequese de Mateus. Enquanto o mundo, representado pelo tirano Herodes, urde, inutilmente, a eliminação de Jesus, as pessoas de boa vontade, representadas pelos Magos, buscam com tenacidade o recém-nascido. E quando encontram, adoram o Menino, sem com isso sentirem-se diminuídos. Voltam para casa, felizes e transformados! O Filho de Maria é, sim, o aguardado novo Moisés!

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