
Envolvente é a solenidade de Corpus Christi. Sua introdução no calendário litúrgico da Igreja deu-se em uma época quando os cristãos demonstravam pouco apreço pela Eucaristia. Razões sérias para tal desinteresse havia. A começar pelo idioma usado na liturgia. O latim era uma língua extinta fazia tempo. As celebrações transcorriam sem que o povo entendesse o que realmente se celebrava. Participava da missa por obrigação de preceito. Aliado a esse, outro dado importante, configurado pela displicência com que os padres celebravam a eucarística, colaborava para aumentar o tédio com a liturgia. Os clérigos estavam mais interessados em sua projeção social que no cumprimento dos deveres pastorais. Cogita-se, então, introduzir uma solenidade litúrgica como uma tentativa piedosa para resgatar a fé e a veneração à celebração da Eucaristia. Nasce em uma comunidade de monjas belgas, com rápida expansão pelo mundo cristão, a solenidade de Corpus Christi! Fixa-se realizar a solenidade na quinta-feira após a celebração do domingo da Santíssima Trindade, por ter sido em uma quinta-feira quando Jesus celebrou pela primeira vez a Eucaristia na Santa Ceia. Poucos são os países, hoje, que guardam a solenidade durante a semana. Na maior parte do mundo católico, a solenidade é obrigatoriamente celebrada no domingo seguinte, cabal demonstração da sua importância no processo de conscientização teológica dos cristãos a respeito da Eucaristia.
A instalação da solenidade favorece, evidente, a possibilidade de oferecer às comunidades dos fiéis uma catequese sobre a Eucaristia. Como o objetivo é resgatar a veneração e o apreço pela eucaristia, o enfoque da instrução passa a ser a real presença do Senhor Jesus Cristo sob as espécies do pão e o do vinho. Surgem, então, algumas práticas piedosas como expressão desta renovada veneração da sagrada presença. Organizam-se procissões com o objetivo de ‘expor’ a presença de Jesus ao povo. Confeccionam-se ricos ostensórios, dignas ‘moradias’ para o Senhor, chegando ao ápice das deslumbrantes custódias ainda em uso na Espanha. A de Toledo é uma legítima capela móvel, riquissimamente ornada. Por sua vez, o povo simples decide confeccionar coloridos tapetes, repetindo o gesto do povo em Jerusalém ao recepcionar festivamente Jesus em sua triunfal entrada na cidade.
A insistência na reverência e na valorização, todavia, introduz uma sutil, embora significativa, mudança de enfoque com relação à Eucaristia. Confunde-se reverência com adoração! Migra-se da dimensão de Ceia e de Sacrifício para a dimensão de adoração. Enxertam-se na celebração da Missa rubricas de adoração, inspirados na devoção à real presença do Senhor sob as espécies eucarísticas, desconsiderando a real e verdadeira presença de Jesus desde o momento quando os fiéis se reúnem para celebrar como também no rito da proclamação da Palavra! O equívoco invade, inclusive, a catequese eucarística, imaginando referir-se a expressão ritual ‘eis o mistério da fé’ ao milagre da transformação do pão e do vinho no Corpo e Sangue do Senhor Jesus! A leitura atenta das aclamações sugeridas pelo Missal para o rito induz o fiel a reafirmar sua fé na original perspectiva da celebração eucarística. A celebração eucarística é mistério da fé porque faz memória da paixão, morte e ressurreição do Senhor Jesus, Aliança da salvação, dimensão maravilhosamente resumida na inspirada oração oficial para o dia, elaborada por Santo Tomás de Aquino.
Em procissão, caminha pela cidade a comunidade dos fiéis, em dia de Corpos Christi, acompanhando o Senhor Jesus presente e vivo nas espécies eucarísticas. Busca-se perpetuar nesta caminhada ‘o mistério da fé’, em sua dimensão teológico-litúrgica, reafirmando publicamente a fé na presença redentora do Senhor na Eucaristia, mas também em sua dimensão solidária, mantendo vivo o atemporal desafio proposto pelo Mestre: dai-lhes vós mesmos de comer!
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